


Pequeno pássaro entre as mãos, 2020
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entre as mãos
“ […] Lembrei do capítulo do Oráculo da Noite em que o Sidarta Ribeiro associa o declínio do sonho à invenção da escrita (“Dos deuses vivos à psicanálise”), culminando com o final da Idade do Bronze. Se antes era pelo sonho e pelo transe que acontecia a comunicação com os deuses, e essas experiências faziam parte da vida pública em qualquer decisão importante de uma sociedade, o culto às divindades e ancestrais começa a perder a força quando sua palavra passa a ser propagada por outros meios. É nessa época também que o conhecimento oral vai sendo deixado de lado (você que tanto pesquisa sobre esses relatos deve saber bem e lamentar o quanto perdemos com isso). [… ] Voltar a ouvir as palavras do sonho com mais atenção talvez nunca tenha sido tão urgente. Ouvir e contar, antes de mais nada, logo na primeira luz do dia. “Um sonho não interpretado é como uma carta nunca lida,” diz uma frase que o Sidarta cita ainda nesse capítulo, ao comparar o entendimento do sonho pela psicanálise ao Talmude, coletânea de ensinamentos judaicos. E as cartas também parecem uma forma de comunicação necessária em tempos de tanta intolerância e muitos falando para ninguém. […] ” Nathalia Lavigne, fevereiro, 2020.
Aquele pequeno castelo encerrou suas atividades, mas mesmo assim ainda não deve haver silêncio. Lembro muito bem do som abafado que reverberava pelas paredes, sempre a mesma música, só a linha de ondas baixas. Como uma pauta mal escrita, com trechos em falta. Talvez fossem apenas batimentos cardíacos abafados por uma caixa torácica. Talvez eu tenha sonhado com isso. Como cartas que só registram as pausas. Pequenas respirações que antecedem algo. Aqui, onde estamos, é mais fácil contar o tempo, ainda mais nesse momento que nossa prioridade é a espera. Pauta, pausa, silêncio.
Você já manteve um pássaro pequeno entre as mãos? Encostar naquelas paredes exigia a mesma habilidade. Mesma sensação. Tudo era frágil, tudo reverberava. Se a resposta foi negativa, apenas imagine um coração batendo dentro do outro. Sonhe com suas mãos. Mãos que fazem e cerram. Sonhe que dentro delas há algo muito pequeno. Uma pequena caixa torácica. Um pequeno tufo de algodão. Um ninho. Penso que é necessário tanto apertar para poder sentir, mas deixar suficientemente livre pra seguir batendo. Há um pequeno pássaro entre as mãos. Outro no peito.
Soube que muito da presença humana nas costas da América foi comprovada pela existência de grandes acúmulos de conchas e reminiscências com mais de trinta metros de altura. Como pequenas montanhas ainda vidas: sambaquis. Tenho certo pra mim que rever sonhos tem muito de arqueologia; como lentamente remover algumas conchas e descobrir o que ainda vive. Como adentrar um sambaqui e de lá retirar palavras que não se conectam, como um texto torto ou pontes para lugares ainda inacessíveis. Fuga, busca, delírio, cura, desejo, afinco. E sonho.