Márcia Xavier: Querida: Casa Triângulo, São Paulo, Brasil

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Apresentação

San Gimignano, Toscana, Itália, 8 de julho de 2014

 

 

Querida,

 

É de San Gimignano que escrevo em forma epistolar o texto que vai acompanhar tua exposição: Querida. De um quarto cravado no centro desta cidade medieval de ruas circulares e torres alongadas que espetam o céu no coração da Toscana, região dada como berço da Renascença, impõem-se pelas contradições e continuidades do tempo e do espaço, entre passado, presente e futuro; ruínas de paredes espessas. Daqui escuto o sino da igreja que badala e me faz lembrar da peste que assolou o povoado no século XIII, estacionando San Gimignano no tempo; mas, seguem-se as contradições no nosso tempo, hoje encontro, sobre suas ruas perfeitamente calçadas, o hiper-turismo do século XXI, como uma imagem reproduzida em acetato. O passado aqui é uma caixa de luz.

 

Assim é, querida, que na Toscana, dividida entre o sólido medieval, encontra-se a Renascença de humanistas como Brunelleschi, Alberti, Petrarca, Boccaccio e Ficino, tão embrenhados nas tradições de seu passado medieval próximo e ao mesmo tempo com a mirada nos restos, nas partes, nos vãos ou nas ruínas do passado clássico remoto. San Gimignano, Firenze — a descoberta dos povos na História. A descoberta de que nós, brasileiros, do ponto de vista de como encaramos a História, talvez sejamos muito mais renascentistas em espírito do que medievais – como se pensam algumas tradições do nordeste – ou iluministas do século XVIII. Somos, por índole, copistas de tradições e simultaneamente revolucionários indolentes.

 

Querida, pensando e vivendo essas coisas, tentando me localizar no fluxo do tempo, medito sobre a Querida. Essa exposição circular, quase barroca, mas de inspiração clássica, talvez em tantas formas seja já maneirista. Inspirada neste “fim” da fotografia, do tempo imperfeito do fotógrafo Luigi Ghirri, é a decomposição do tempo, da própria História, que está diante de nós. A alegoria entre arquitetura e corpo, a visão de um mar imaginário que brota acidentalmente da imagem de uma grande coluna romana, a sensualidade das mãos partidas das ex(culturas) deságuam na “origem do mundo”, recriada como se fosse um cartão-postal do nosso querido Ghirri.

 

As referências rompidas do passado são tantas que corre- se o risco de afogar-se num lugar do não tempo. Afogar-se, talvez, nas marés da História contrapondo-se ao fluxo do tempo. O mar em Querida é cristalizado como sal; sua forma sólida. Na exposição, as imagens não se afogam neste mar, mas ficam eretas e rompem o sal movediço.

 

A exposição Querida é, para mim, uma reflexão sobre o tempo, antilinear, mas repetitivo e circular. Apesar das mais diversas formas de expressão, fotografia é a referência mestra que aparece na forma mais clássica – pendurada na parede – como também é reencarnada por meio de materiais diversos e ressurge como escultura ou instalação. Ainda assim, a fotografia, com seu ponto monovisual, é a expressão máxima daquela Renascença perdida nas areias movediças da Idade Média. A História queria! Querida! Imagina-se o tempo e suas transformações como o fino cristal mole da lâmina de água que reflete, à maneira de um espelho, a cidade antiga, que já fora moderna e torna, querida, de novo, a reencontrar-se eternamente com a modernidade. 

 

Querida, por favor, imprima esta missiva em Itálico, fonte conhecida também como Renascença, inventada pelo humanista Poggio. Ele achava que estava seguindo modelos clássicos, porém o seu paradigma teve origem em fontes pré-góticas da Idade Média.

 

Ricardo Sardenberg