Campo de batalha: Antonio Henrique Amaral 90 anos: Curadoria de José Augusto Ribeiro
“As ideologias, a política, os acontecimentos sociais da época, minha vida amorosa, sentimental, a técnica da gravura, a contenção no traço e no desenho, as dúvidas existenciais, enfim, todos os ingredientes da vida, eu acreditava que poderiam ser expressos e experimentados através da atividade artística.”
(Antonio Henrique Amaral, em entrevista a Maria Alice Milliet, ao falar do “pressentimento” que teve, aos 17 anos de idade, de que “seguiria o caminho da arte”. Milliet, Maria Alice. Entrevista: anos de formação, primeiros sucessos... In: Milliet, Maria Alice (org.). Antonio Henrique Amaral: Obra gráfica: 1957-2003. São Paulo: Momesso Edições de Arte, 2004, p. 31.)
Por seis décadas, de 1955 a 2014, Antonio Henrique Amaral fez do trabalho de arte uma espécie de campo de batalha, o terreno em que travou embates abertos com aspectos da vida pessoal e da esfera pública, durante a realização de uma obra capaz de abarcar a intensidade e a envergadura de seus anseios. Nessa produção, o artista tanto confrontou a figuração de estados físicos e mentais – de afetos, dores, desejos, sentimentos psicológicos, indagações existenciais –, quanto manifestou inconformismos em relação a acontecimentos e práticas da política, à desordem da expansão urbana, à negligência com questões ambientais, e daí por diante. Sua intimidade, as relações intersubjetivas e contextos sociais – o seu, o meu, o de todo mundo – sempre estiveram interconectados no ânimo de suas investigações estéticas, a compor uma totalidade que se mostra explosiva ao longo do percurso.1
Antonio Henrique desenvolveu, com esse impulso, uma obra de notável singularidade no panorama da arte contemporânea, sem jamais fixá-la a um “estilo”, a um conjunto de características visuais, técnicas e métodos, para chamar de próprio. Preferiu a isso embates cruzados entre vertentes artísticas e repertórios culturais variados, considerados altos e baixos, eruditos e populares, nacionais e internacionais. Na lida, por exemplo, com o expressionismo, o cubismo e o surrealismo, com a antropofagia e o muralismo mexicano, com Wifredo Lam, Joan Miró e Roberto Matta, com a arte pop e a tropicália, com as xilogravuras da literatura de cordel e a lógica narrativa das histórias em quadrinhos, com o hiper-realismo e a ficção científica, com o grafite de rua e a pintura dos anos 1980, entre tantas e tantas coisas mais.
Por outro lado, em meio a essa multiplicidade de materiais e registros, o artista costumava adotar um elemento, um “tema”, que, por determinado período, cumpria o papel de fio condutor de seus processos; um motivo que, reconfigurado em sucessivos trabalhos, acabava por se tornar, também, uma marca daquela obra em andamento. Muitos desses signos são indicadores de violência, erotismo, drama e humor. São bocas humanas, dedos em riste, bananas, cordas, garfos e facas, bambus, cristais, punhais e lâminas, torsos masculinos e femininos, corpos esquartejados, fumaça, palcos de teatro, corações. Sinais de prazer e destruição, de paixão e suplício, que se alternam ou convivem em cenas de grande movimentação, em que os acontecimentos são mostrados como em efeito de zoom, em primeiríssimo plano – rentes à superfície do suporte, logo, muito próximos do observador –, o que aumenta a tensão e o impacto visual da imagem.
O resultado dessa labuta é, assim, uma obra extensa, variada, marcada por oscilações e, de maneira geral, enérgica – nos gestos, nas escalas e nas figurações que dá a ver. Trata-se, também, de uma produção que, desde a segunda metade do século XX, continua a ocupar posições influentes no cenário cultural brasileiro e que fez inserções importantes no debate sobre a arte na América Latina e em determinadas instituições dos Estados Unidos, sobretudo entre 1970 e 20002. Estima-se que esse legado compreenda cerca de 2.500 itens, entre pinturas, gravuras, desenhos e estudos.
A exposição Campo de batalha marca, agora, os 90 anos de nascimento de Antonio Henrique Amaral (em 24 de agosto de 1935) e lembra os dez anos de sua morte (em 24 de abril de 2015). A seleção reúne mais de 60 obras, produzidas entre 1957 e 2011, constituindo um panorama abrangente desse percurso. O objetivo, porém, não é contemplar as várias facetas que o distinguem, mas sublinhar uma das características dominantes na obra completa do artista: os procedimentos alternados ou simultâneos de construção e desconstrução das formas – a montagem de estruturas a partir de fragmentos heterogêneos e o desmanche, o desfazimento, de unidades em pedaços. A hipótese é de que tais operações, embora assumam soluções variadas ao longo dessa trajetória, estão na base do dinamismo visual que particulariza o trabalho de Antonio Henrique, do começo ao fim.
De saída, há uma espécie de bestiário povoando a produção inicial do artista, entre 1955 e 1963, composto de criaturas híbridas, meio-animal-meio-vegetal, meio-homem-meio-bicho, meio-ser-meio-coisa, que avançam sobre desenhos, linos e xilogravuras – antes, portanto, de o artista exercitar a pintura, o que só aconteceria, de maneira sistemática, a partir de 1965. E tais anomalias inspiram, antes de monstruosidade, mal-estar, como se aquelas metamorfoses exprimissem ou decorressem de sofrimentos físicos e psicológicos, de medo, angústia e sensações dolorosas, mesmo. Em parte desses trabalhos, os personagens estão ou tentam estar em ação. Caminham, encontram-se em luta, queda, sob pressão. E mesmo naquelas figuras aparentemente estáticas, as torções e as desproporções físicas de suas conformações desequilibram a imagem e informam, nesse sentido, a alteração de um estado ou condição longe da estabilidade.
Em xilogravuras e pinturas de Antonio Henrique dos anos 1960, uma operação recorrente é a de fracionamento e multiplicação simultâneos de figuras. Por exemplo, bocas. Há cabeças com duas ou três delas, e há bocas sem cabeça nenhuma, que, lado a lado, se fecham em círculo ou alinham-se em diagonais, abertas, com dentes e língua à mostra, entre falantes e sacanas. Da mesma maneira, há pata de cavalo, mão e pé humanos que, decepados, juntam-se em passeata, com o empenho de dizer algo, enquanto carregam cartazes com frases incompletas. Também em pinturas do artista do final dos anos 1980, corpos humanos aparecem picados: cabeça, bocas, dentes, corações, dedos e línguas fatiados, juntos de punhais, garfos, um pedaço ao lado do outro, uma coisa ao lado da outra, às vezes tudo disposto em um palco de teatro, com as cortinas desfraldadas, em cena aberta. Corta!
O título da mostra, Campo de batalha, vem de uma série de trabalhos que Antonio Henrique Amaral produziu entre 1973 e 1976. Esse grupo, composto principalmente de pinturas e desenhos, encerra um longo período em que o artista se concentrou na figuração de bananas, iniciado em 1968, em alusão à situação geopolítica do Brasil, então sob ditadura militar, implantada após o golpe de Estado de 1964, apoiado pelos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria. Era o Brasil submetido à condição de uma “república de banana”, termo cunhado pelo escritor estadunidense O. Henry, no começo do século XX, em conto inspirado na relação entre Honduras e Estados Unidos, ou, em particular, no fato de a economia hondurenha se basear, à época, na exportação de bananas ao país norte-americano. Dali em diante, a expressão passou a ser usada também para se referir a nações da América Latina dependentes politica e economicamente dos Estados Unidos.
As frutas surgiam na pintura de Antonio Henrique, portanto, de maneira jocosa, um pouco à tropicália, como símbolo fálico, autenticamente brasileiro e, ao mesmo tempo, pejorativo, por deixar implícita a submissão3. Em seguida, é diferente: as frutas começam a aparecer amarradas ou suspensas por cordas, à medida que se intensificava a repressão do regime político imposto ao Brasil. Até que, em Campo de batalha, as bananas passam a vir à tona cortadas por facas, perfuradas ou atravessadas por garfos, e despedaçadas, irreconhecíveis como frutas e confundidas com vísceras. Na última pintura da série, Campo de batalha 35 (1974), já não há sinal de banana. O que se vê é um espaço escuro, talvez um abismo, entre duas faixas verticais, ou dois dentes de um garfo de metal, com um brilho frio e soturno, a lembrar as grades de uma cela sem luz. A violência ocupa assim, sem a possibilidade de horizonte, o lugar que fora antes da irreverência e do sarcasmo.
Já a aglomeração que caracteriza a representação de cachos e pencas de bananas, na virada para a década de 1970, é reforçada em seguida, na figuração de hastes metálicas retorcidas (No metálico, as janelas, 1976), ou de formas geométricas que lembram cristais e cones pontiagudos, ou, ainda, de fileiras e fileiras de bambus, redundando em espaços cada vez mais claustrofóbicos, abarrotados e sem profundidade. Não deixa de ser curioso que, logo depois disso, tudo na produção do artista estoure em estilhaços (a exemplo do que ocorre na litogravura Crac!, de 1976), liberando uma energia que, de fato, parecia retida, com tantos elementos entulhados e em desordem. Mas os fenômenos de aglutinação e dispersão aparecem também concomitantes, mais tarde, na representação de temas passionais, como em Casal de novo (1995), em que dois torsos, unidos em um só corpo, flutuam em meio a uma enorme nuvem de fumaça, que, por sua vez, sugere a detonação de uma bomba atômica.
Do final da década de 1990 em diante, é um mundo inteiro que se encontra em desmantelamento, nas figurações do artista, e vai pelos ares. Pedaços de seres e coisas desmancham-se pelo caminho, enquanto rumam sabe-se lá para onde, e são arrastados por ventanias, envolvidos em nuvens de poeira. Os títulos de alguns desses trabalhos são eloquentes quando aludem a desentendimentos, perdas e a um fim: Carta pouco esclarecedora, lançando mais confusão sobre assuntos já contraditórios… (1999), As partes todas em fuga, assim parecia... (2011), Antes, durante e depois... da queda… (2008), Ao apagar das luzes (2009). Ressoam nessas imagens e palavras, como no início da produção de Antonio Henrique Amaral, suas lutas internas, amorosas, políticas e estéticas, travadas com vigor e força, na feitura do trabalho. Pois isso fica. E aqui está a obra, hoje, em combate.
José Augusto Ribeiro
1Em 1967, Antonio Henrique imprime o álbum de xilogravuras O meu e o seu, acompanhado de texto do poeta e crítico de arte Ferreira Gullar. A obra compõe-se de sete estampas caracterizadas, entre outras coisas, por cenas de incomunicabilidade, gestos autoritários, pela expressão de pensamentos íntimos e por pedidos de paz e prosperidade como palavras de ordem. Nessas gravuras, há experimentos gráficos e cromáticos que sinalizam novidades e que se revelariam importantes, dali em diante, na produção do artista – pelo desenho sintético, direto, que preenche as superfícies do papel com a repetição de seus elementos, e pela escolha e combinação de cores fortes, em comparação com o predomínio de preto e branco em sua obra gráfica até então.
2Além de viver por diferentes temporadas nos Estados Unidos, nesse período, Antonio Henrique realizou várias exposições individuais em galerias e participou de diversas mostras coletivas, sobretudo de arte latino-americana, em instituições dos Estados Unidos e da América Latina. Ainda nessa época, museus da relevância do Metropolitan, de Nova Iorque, e do Museo de Arte Moderno da Cidade do México incorporaram obras do artista a seus acervos. No mais, uma parte significativa da produção do artista dos anos 1980 e 1990 pertence a coleções particulares com base nas Américas.
3Em texto para o catálogo de uma exposição de Antonio Henrique na Galeria São Paulo, em 1985, o escritor Ignácio de Loyola Brandão transcreve um depoimento do artista sobre o “clique das bananas”: “Quem sabe foi o falo de O rei da vela [montagem de José Celso Martinez Corrêa da peça de Oswald de Andrade, em 1967, no Teatro Oficina, em São Paulo], aquele canhão, lembra-se? Ou então o clima de deboche que comecei a ver, o golpe militar, o AI-5, Feira Paulista de Opinião criticando tudo – entrei no palco empunhando uma banana gigante – a agitação política. (...) Disso nasceu a banana. Estávamos muito por baixo, no Brasil, marginalizados. Nada era sério. A questão era levar a sério o não ser sério”. Nesse trecho, Antonio Henrique refere-se à sua escultura 1964: O desabrochante, que tinha a forma de uma banana descascada e que foi apresentada na Feira Paulista de Opinião, produzida pelo Teatro de Arena, em 1968. A imprensa publicou à época pelo menos duas fotos da obra, hoje desaparecida, neste evento: uma com o autor diante da escultura, junto com a banda Os Mutantes, e outra em que aparecem os compositores e cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso ao lado do trabalho.