ZÉ CARLOS GARCIA . PEIXE DAS NUVENS: CRITICAL ESSAY BY DANIELA LABRA
Casa Triângulo tem o prazer em apresentar Peixe das Nuvens, a primeira exposição individual de Zé Carlos Garcia na galeria, com ensaio crítico de Daniela Labra.
E como se fosse sonho, uma chuva caiu trazendo peixinhos brilhantes no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro. O caso, ocorrido há alguns anos e testemunhado por moradores, diz respeito ao fenômeno chamado de Chuva - ou Nuvem - de peixes que acontece quando um tornado, em tempestades fortes, suga um cardume do oceano ou lago e o transporta para a terra pelos céus. Quando os ventos arrefecem, os animais em suspensão no ar caem como a água das nuvens e parecem “chover”. O Peixe das Nuvens que dá título à mostra, por sua vez, não cai do alto, mas brota do solo. Ele é uma espécie pequena e colorida da família Rivulidae que vive em poças e possui ovos que resistem em charcos secos por meses. Quando as temporadas de chuvas retornam e inundam essas áreas, os embriões eclodem e os bichinhos aquáticos parecem nascer do chão.
Encantado com esses milagres da natureza que estimulam o imaginário, Zé Carlos Garcia se lançou na criação do mundo mitológico materializado nesta individual. O artista apresenta um conjunto de peças únicas, quase todas inéditas, que ganham sentido quando estão em relação umas com as outras. Esses seres, meio bicho meio humano meio móvel meio fruta meio deuses, são habitantes de uma sociedade fantástica cuja existência concreta resulta da intensa atividade mental e labuta artesanal de seu criador. Os entes esculpidos e objetos compostos com madeira antiga, arranjos de plumária ou crina de cavalo configuram um universo de maravilhamento místico e mistérios. Em Palavra, um painel em sete unidades (letras) é a mensagem antiga e oculta a ser decifrada, enquanto em outras o tom fabular é mais presente. Esse é o caso de Vendo com outros olhos, a escultura de um menino suspendendo uma cabeça feminina que pode ser a de sua mãe, de um algoz ou uma profetisa, talvez. As obras Múmia, Cabeça de Bacia e Peixe das Nuvens também se encaixam nesse lugar de nomenclaturas extraordinárias para figuras enigmáticas. E o enigma, aliás, está presente como uma atmosfera de incógnitas e luzes em todo o conjunto.
Algumas peças possuem características arquetípicas, como é o caso de Monada: um antebraço e uma mão com um olho na palma que se sustenta por uma haste de madeira roxa erguida em uma base oval. Ela é considerada pelo artista como a mais poderosa unidade de força do conjunto, porque é para ela que tudo converge. Monada, na linguagem científica significa, ainda, uma substância simples, ativa, indivisível, de que todos os entes são formados. O universo proto-surrealista de Hieronymus Bosch é uma inspiração na criação desses seres fantásticos que emergem das toras, troncos e galhos com seus nodos, veios, sinuosidade, cor, densidade.
Zé Carlos Garcia materializa imagens, expressões, gestos, e não apenas formas. Nesse processo, ele necessita da violência do machado que marca a madeira, pois é o desenho dos golpes que faz uma figura surgir. Como explica, o ato de golpear repetidamente não o leva a um automatismo psíquico, já que o movimento enérgico o mantém desperto: “o golpe que vai na peça vai em mim também”. Na fissura da criação ele acorda de madrugada, pensa na imagem, demarca o que será talhado. Passa dias elaborando a peça mentalmente e em esboços, prospectando. Até que, quando começa a esculpir, é rápido, chegando a finalizar uma peça em até dois dias, ainda que sofra fisicamente depois.
Dentre as madeiras trabalhadas pelo artista estão o pinus, oitis, o roxinho – muito usada como cabo de enxada pela sua dureza, e o eucalipto. Esta última, uma conhecida espécie exótica plantada para o beneficiamento de celulose, é recolhida por Zé Carlos no processo de restauração da mata do seu sítio, onde substitui a árvore “invasora” por uma muda nativa, em um ato reparador tanto ecológico como simbólico.
Zé Carlos Garcia esculpe objetos desde muito pequeno. Quando jovem, entrou na faculdade de licenciatura e tentou concluir também um Bacharelado em Escultura, no qual foi reprovado ao se recusar a fazer exercícios de peças realistas em madeira. Os considerava óbvios e formalistas e insistia em fazer trabalhos mais conceituais. Contrariando o professor, recebeu notas baixas que o fizeram abandonar o curso. Hoje, sendo um artista maduro com experiência profissional pregressa na confecção de adereços do carnaval carioca, entre outras, ele alia técnica, pensamento estético e conceito. Com os anos, fabulou um cosmos poético fora do protocolo acadêmico para se tornar um dos maiores escultores de sua época. Seu vocabulário imagético está para além da forma - que bobagem!, e ostenta uma beleza enigmática solene, atemporal, que não pertence a nenhum verbo nem categoria. É mitologia.
Daniela Labra
Zé Carlos Garcia (1973, Aracaju, Brasil. Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil). Em 2023, Garcia apresentou uma obra comissionada na 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, com curadoria do brasileiro Raphael Fonseca e da queniana Renée Akitelek Mboya. Também foi premiado na edição de 2023 da feira Arco, em Madrid, pelo conjunto de sua obra escultórica sustentável. Mais recentemente, foi comissionado pela 14ª Bienal do Mercosul para desenvolver uma série de esculturas exibidas na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre.
Entre as suas exposições individuais, destacam-se: Escultura cega, Galeria Marília Razuk, São Paulo, Brasil (2023); Grande Circo Floresta, curadoria de Claudio Oliveira, Portas Vilaseca Galeria, Rio de Janeiro, Brasil (2021). Do pó ao pó, Galeria do Lago, Museu da República, Rio de Janeiro, Brasil (2017); Jogo, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Brasil (2013).
Exposições coletivas recentes incluem: Constelações em Trânsito: Uma escuta cartográfica, curadoria de Luisa Duarte, Galpão da Lapa, São Paulo, Brasil (2025); Meu quintal é maior que o mundo, curadoria de Priscyla Gomes, Casa Triângulo, São Paulo, Brasil (2025); Terra Comum, curadoria de Lucas Albuquerque, Z42 Arte, Rio de Janeiro, Brasil (2024); Ensaios sobre paisagem, curadoria de Douglas de Freitas e Deri Andrade, Inhotim, Brumadinho, Brasil (2024); O Mágico de N’Oz, curadoria de Fernando Mota, Danielian Galeria, Rio de Janeiro, Brasil (2024); Ainda Viva, curadoria de Bruna Costa e Paula Borghi, Casa de Cultura do Parque, São Paulo, Brasil (2024); Passeio Público, curadoria de Carolina Rodrigues, Daniela Name e Paula Camargo, Caixa Cultural Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (2023); NISE – A Revolução pelo Afeto, curadoria do Estúdio M’Baraká, com consultoria do psiquiatra Vitor Pordeus e do museólogo Eurípedes Júnior (Sesc Belenzinho, São Paulo, Brasil (2022); e Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil (2021); entre outras.
Seus trabalhos fazem parte de importantes coleções públicas e privadas no Brasil e no exterior, entre elas: Pinacoteca de São Paulo, São Paulo, Brasil; Instituto Inhotim, Brumadinho, Brasil; MAR - Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; Coleção Frederic de Goldsmith, Bruxelas, Bélgica; FAMA - Fundação Marcos Amaro, Itú, Brasil; Coleção Andrea e José Olympio, São Paulo, Brasil.