FERNANDA GALVÃO . DUAS LUAS: CURADORIA DE MARCOS MORAES
Duas luas, ou acerca de mergulhos...vermeil!
As pinturas de Fernanda Galvão que aqui se apresentam são como um convite para embrenhar-se em uma dimensão, e em uma atmosfera de realidades paralelas e distintas nas quais a articulação mais complexa de cores e formas, de gestualidade mais ampla, e mais livre possibilitam mergulhos, sobrevoos, delírios e devaneios.
Adentrar o espaço da exposição, por entre as pinturas é propor ao visitante para submergir, e emergir em um ambiente de novas percepções pessoais, instigados pelas provocações que ela apresenta, não como definitivas imagens do mundo, mas como possíveis mundos resultantes de seu desejo e, também - por que não - dos nossos, e de nossas pulsões que podem nos devorar, ou também propor que queiramos decifrá-las, para nos decifrar.
Para Fernanda Galvão a pintura é, antes de tudo, uma afirmação, entretanto, não significa uma impossibilidade de experimentar, ou mesmo desenvolver projetos em outras condições. Ela se insere em uma linhagem de “pintoras” que parecem ser capazes de, permanentemente, desafiar as tão propaladas mortes anunciadas da pintura, em um tempo controlado pelos processos de edição e mixagem, não apenas da imagem, mas de todas as nossas formas de experiência com o mundo. Ela prefere seguir desafiando as discussões estabelecidas internamente ao meio entregando-se desavergonhada e apaixonadamente ao que a instiga e provoca como possibilidade de produção de imagem, e mergulhar na pintura.
Acompanhar as investigações e as produções que ela - ao longo dos seus dez anos de trabalho - tem desenvolvido, possibilita olhar para aspectos marcantes e presentes nas distintas proposições que, obviamente, não poderiam ser facilmente recolhidas, elencadas e reduzidas aqui a um parágrafo. Ainda assim, parece ser imprescindível apontar alguns, como o interesse e o fascínio explícito pela cor que se manifesta desde o início, pelos hipnóticos e desestabilizadores vermelhos e rosas dos experimentos no espaço, já em 2015/16. Naquele momento o sangue pulsa, vibrante, vivo, erótico e carnal! Já está lá a colorista audaciosa e intrépida, alucinante e alucinógena a nos capturar o olhar e a atenção.
Uma certa atitude inicial de fixação na imagem do corpo, ou melhor, na materialidade desse corpo fragmentado, que se dissolve, se amalgama e se transforma é outro ponto identificável neste possível acompanhamento da produção, nos possibilitando perceber o processo de deslocamento do olhar, do qual decorre uma metamorfose de, e para outros corpos – os do mundo vegetal e mineral – ainda que isso nunca seja de forma explicitamente escancarada.
Se desde o princípio os interesses pelos “corpos” – e são muitos e diversificados - podem ser identificáveis, esse amplo universo de desejo de imagens leva a explosões, por vezes aparente, do anatômico, do orgânico, e agora acentuadamente apontam para uma vulnerabilidade das formas, contrastadas e instabilizadas pela saturação da cor, pela intensidade de contrastes e presença de luminosidades assinaladas por brilhos que se insinuam por entre elas.
Muitas e distintas camadas de referências e de temporalidades compõem um cipoal de emaranhados entrelaçamentos atravessando a produção de Fernanda, as declaradas e assumidas que perpassam a relação com a natureza, e as da paisagem e o mundo interior que poderiam estar em um amplo espectro coberto pelas produções de distintos artistas de Manet a Rothko. Estas constituem-se apenas em um fio condutor atravessado pela ficção científica filtrada pelas ideias de Ursula K. Le Guin, pela poesia, pelo sonho e as referências surrealistas, pelas fabulações, pelos atlas, mapas, pela botânica e herbários, e muitas outras possíveis formas de representação e codificação da natureza.
Momento crucial para as pinturas é compreender seu raciocínio tendo como ponto de partida de realização, as “paisagens” - e referências a elas - armazenadas na memória. Neste sentido a experiência dos deslocamentos precisa ser mencionada como outro relevante aspecto da produção, ao poderem ser vislumbradas imagens que se identificam com contextos distintos e distantes que vão de São Paulo ao deserto, na Califórnia (Joshua Tree National Park), de Paris à Catalunha, para mencionar apenas aqueles em que o residir se torna uma forma de experimentar e conviver com a natureza e as paisagens.
Se em cada um dos ateliês ao longo dos deslocamentos restos de imagens pictóricas cobrem as paredes, permanecendo como sombras e vultos, em algumas das telas são perceptíveis as indeléveis marcas da pintura de uma paisagem e seus seres “inanimados”, por vezes ainda ligados à um ambiente aquoso, úmido e de uma organicidade que apresentam um ecossistema pessoal habitado por essas formas que se transbordam em visualidade, sem querer representar, ou descrever, ainda que isso possa ser relativizado, mas deixando visíveis esse onírico e singular mundo visual, por ela proposto.
Em Cobra-árvore, mantém-se alguns resquícios, que se poderia afirmar como memórias das passagens pelas paisagens distintas. Aqui já se percebe uma insinuação de vegetação verticalizada rompendo a horizontalidade que permanecia dominando os trabalhos. Uma insinuação das plantas diversas atravessa a atmosfera e não podemos deixar de fitar, de querer mergulhar nos profundos azuis que, como um pano de fundo, delimitam o espaço na tela. Reafirma sua habilidade singular para representar figurações, formas abstratas, ambíguas e amorfas com requintada precisão
A partir desse momento, ou seja, nas telas que se seguem, as dimensões das superfícies se ampliam e são tomadas pelas cores que se tornaram mais complexas e variadas, com a presença marcada dos inebriantes vermeils aprofundados pelos vinhos e bordôs que ela emaranha, trança e trama com cor, sobre a trama da tela. O uso extremado de luz e sombra substitui a variação de tonalidade mais presentes em sua pintura anterior. O uso do pastel seco com brilho que ela experimenta nas pinturas de intensidade saturada, a mistura dos materiais e texturas somados ao aumento da sobreposição de cores e ao emprego do glitter reforçam e acentuam essa condição de energia, vigor e impetuosidade das imagens.
Particularmente a partir do emprego da paleta de cores Duas luas, Lua Mamão, Serpente Redemoinho, Mamão do fundo-do-mar, e mesmo na distinta Ovo de Peixe, o conjunto de elementos se torna acentuadamente presente e afirmativo, criando uma atmosfera em que paisagens internas, psicológicas, fantásticas e quase-cenários estabelecem uma forma de densidade carregada de intensidade emocional e artística.
O conjunto afirma o atual momento de exuberância poética da pintura, que se torna mais complexa, ao mesmo tempo que mais solta, mais livre, mais “lidando com o inesperado” nas palavras da artista que ainda as vê como “mais fortes e de maior energia, com outra vibração de cor, e nas quais o fundo se afirma como personagem”, referindo-se à sua produção anterior. Para ela, ainda, há uma menor manutenção da linha aparente que, assim como os processos de catalogação de elementos, deixam de marcar e isolar cada uma das imagens que, agora, se suavizam mais facilmente diluídas – planando, ou se lançando nas profundezas - e inseridas no clima e na tensão gerados por polos de força e energia propostos por Fernanda em cada uma das telas.
Ao mesmo tempo, Fernanda passa a explorar com mais frequência e intensidade uma de suas características: a fusão dos espaços – terra/mar com o céu/ infinito – com uma imagem metamorfoseando-se em outra, indefinindo com convicção a imagem, dissolvendo limites, ainda que parcialmente, configurando paisagens interiores, de outras dimensões. Extremamente difícil determinar-se em que ponto, ou se os objetos repousam no chão, no fundo do mar, ou flutuam no ar. A menção a três outros trabalhos Alface Noturna, Olhinhos Noturnos e Onda (Yellow Force) apoiam o raciocínio, enquanto enveredam na exploração por outras relações de forma e cor, ainda privilegiando o alto contraste.
Uma aparente contradição entre títulos e imagens poderia ser interpretada ou, também, entendida como continuidade do processo de alto contraste imposto como regime de trabalho por Fernanda; proposição como uma espécie de jogo infantil e fantasioso, entre eles e as formas, por vezes perversas como os resquícios de referências a plantas – não mais as carnívoras que a fascinaram – agora e aqui mais como devoradoras e deglutidoras da cor e não de corpos, ou almas... como acontecem nas referências a ficção científica. Deglutidas, reavivadas as cores são regurgitadas fortalecidas e imponentes.
A ambiguidade se intensifica pelas mudanças na densidade dos objetos que, lançados nesse lugar indefinido no qual o horizonte é permanentemente substituído por um tratamento contínuo e fluido do espaço, adquirem outros sentidos que não os esperados para as formas que se insinuam ao olhar. Subvertidos eles adquirem outros status, novas configurações em um mundo mais coeso entre si. Um mundo? Uma galáxia, ou mesmo o universo....
Marcos Moraes
Paris set 2024/ São Paulo out 2025