Thiago Rocha Pitta: Nigredo: Casa Triângulo, São Paulo, Brasil

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Apresentação

Thiago Rocha Pitta: Nigredo

por Pedro Cesarino

 

“É triste e sem remédio a sorte dos mortais…/ Esboça-se a ventura em traços imprecisos,/ os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”[1]. Com essas palavras, a profetisa Cassandra vaticinava o assassinato de Agamênon e a destruição de sua casa real, maculada por crimes pretéritos. A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado. Thiago Rocha Pitta prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Na noite de 2 de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos.

O apodrecimento da terra e de seus corpos, consequência direta do saque colonial, implica na passagem pela via obscura, cujo portal é iluminado pela falsa luz de um sol refletido – a luz lunar. Encontramo-nos diante dos umbrais, nas fronteiras tornadas indiscerníveis pela coloração crepuscular que dissolve os corpos, toma de assalto a respiração, empurra nossos ânimos para as profundezas de uma cova que julgávamos não ter escolhido. Saturno, com sua densidade melancólica, é quem preside o nigredo, a putrefação e a morte envolvidas nesta primeira etapa alquímica. Sua contrapartida é a imagem de uma deusa da água que emerge do mar, igualmente noturno, mas redimido pelo maravilhoso. O céu que a recebe e que é seu próprio corpo, contudo, não é aquele infestado pelas chamas que tragam dos subterrâneos o carbono antigo, permanentemente transformado em lucro – essa suprema perversão alquímica de que somos prisioneiros. A bem da verdade, a redenção pelo maravilhoso não será possível enquanto o crime não for expiado. Lembremo-nos: no dia 2 de fevereiro, cultua-se na Bahia a única grande festa popular brasileira integralmente dedicada a uma deusa-mãe, e cujo nome permanece sendo de origem africana: Yemanjá.

As séries melancólicas de Thiago Rocha Pitta, se bem que prenunciem os crimes e seus efeitos deletérios sobre um tempo cada vez mais incerto, o fazem a partir do que excede e limita o humano. Eclipses são avisos de tempos sombrios, dir-se-ia, mas poderiam muito bem não ser nada disso. Afinal, porque tais fenômenos precisariam figurar como imagens de nossas relações internas? Por que deveriam de alguma maneira significar? Eclipses são pura exterioridade, a indicar os paradoxos de um pensamento que não consegue sair de si mesmo. Os presságios que eles supostamente transportam poderiam ser apenas projeções de um sujeito desesperado sobre aquilo que lhe é completamente alheio, ou então mensagens realmente emitidas por fenômenos que nos escapam. É nessa ambiguidade que reside a sua potência, pois não se pode decidir se os augúrios são expectativas nossas ou se, ao contrário, são impostos de fora para designar nossa infeliz condição. Deve haver, portanto, alguma correlação entre as duas posições para que o sentido se torne possível, ou então estamos afundados em um horizonte de fenômenos indiferentes que não tardarão por apagar os traços imprecisos de nossas angústias. Uma porta não estaria aberta ou fechada se o fogo já tivesse corroído o seu batente. Conquanto insistimos em ser essa estrutura de contenção, não temos como escolher entre as duas alternativas. 

Um filósofo dizia que apenas a contingência absoluta, com a qual o tempo coincide, é que designa o possível, essa dimensão que em muito escapa ao que é pensável. Ora, aquilo que extrapola o pensamento é, também, o que transborda o humano, mesmo quando este imagina ser capaz de controlar o que o excede. O saque, derivado de tal ilusão do controle, termina por conduzir à catástrofe, uma espécie de vingança do possível com relação às pretensões do pensamento. A extração do carbono pelas refinarias se quer interminável, feito incêndio perpétuo a corroer o céu da Baía de Guanabara. Mas o tempo a dissolverá, junto com os desfeitos que ela propiciou ao criar este mundo possível que nos habita. Um meteorito que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença, como saber? Se tal hesitação fundamenta dilemas filosóficos que parecem aqui encontrar uma potente expressão estética, ela não serviria entretanto para desviar o foco do que, mais especificamente, nos compete: não esquecer que a justiça é o lume em meio ao céu nublado pelos incêndios.

 

 

 

             



[1] Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Tradução de Mário da Gama Kury.