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Bom dia Zé,
Te envio esta carta de Bruxelas, choveu muito este verão. Lembro da nossa travessia da Bélgica pela margem. Ainda não consegui ver o raio verde, busquei ele durante o verão inteiro no Rio, mas não o vi. Só vi as manchas verdes que aparecem nas fotos. Finalmente o encontrei no museu, aqui, o seu Raio Verde flutuando na parede, perto do Duchamp.
Sua busca reverbera, traçando círculos como tantos desenhos na areia: do Raio Verde para o amanhecer que você captura. O título da sua exposição parece um poema, uma metáfora, embora sei que é sobretudo um registro. O registro do estado de graça que é o nascer do dia. É um momento de suspensão, como o voo das gaivotas no céu azul. É uma qualidade que existe na sua forma de enxergar coisas sutis, que passam despercebidas ao olho alheio; na delicadeza do seu olhar que pousa na matéria e define novos contornos para o mundo, organizando ele em fluxo.
Levou a areia até a grama, fincando um mastro sem bandeira no vento da sua exposição. Uma escultura esguia, discreta embora maciça. Sei o peso dela, mesmo ela tendo conquistado ares de leveza pelo deslocamento que operou. Acho lindo como o mar vai e vem com você, como a maré, a ressaca; como você convida o mar para passear na cidade, proporcionando uma sombra para as estátuas petrificadas no sol de verão, ou recriando um berço para acolher barcos no aterro. Nas suas andanças, será que você sente a ondulação do mar debaixo da sola dos seus pés? Parece ser esta sensação que se encontra nas lombadas das suas obras: lembram os carneirinhos no Arpoador, quando sopra o vento sul-oeste que leva a alegria dos surfistas.
Hoje pela primeira vez desde que cheguei, o sol está raiando, o céu todo azul. É um dia de verão, finalmente. Arrepiei quando li a sua carta, arrepio ainda agora, escrevendo. É um pouco como o poder mágico das primeiras horas do dia. A baixa saturação das cores, o ruído abafado da cidade. As pequenas delicadezas da vida, as trocas que acontecem de um bom dia cedo quando o mundo ainda está silencioso. Os raios do amanhecer espelhados, cartões postais de momentos fugazes, garrafas jogadas ao mar.
Estou aqui com o Juan, preparando a nossa exposição também. Ele fala que toda obra é uma carta de amor - todas as cartas de amor são ridículas, dizia o Pessoa – Mesmo assim, são garrafas jogadas no mar, são tentativas de comunicar, de compartilhar uma forma de ver o mundo, cartões postais de momentos fugazes, raios do amanhecer espelhados.
Você comentou do quanto a exposição do Leonilson o impactou, e de como ver a obra do Bispo mudou a linguagem dele. Vejo afinidades entre vocês. A linha azul, obsessiva do Bispo, os bordados do Leonilson, as suas costuras que marcam o tempo passado no ateliê. Costurar é uma atividade delicada, uma forma de definir narrativas, de criar mundos nas entrelinhas, sem imposição. Gostei do que você escreveu sobre a escuta do fazer, o poder da intuição. A intuição é a melhor guia, é inclusive o título da exposição mais linda que já vi, uns anos atrás em Veneza.
O vazio : SIM, exatamente... levar o vazio, o silêncio da madrugada para a exposição... pelo menos
tentar ! É linda a ideia de definir contornos, de mostrar as coisas pelas margens,
atravessar os significados. O vazio também fala deste lugar de ausência de certezas, de olhar para dentro de si, de seguir a sua intuição e ter a coragem de trilhar novos caminhos…
Estou feliz, alterei meu voo para chegar no Rio dia 12, ansiosa!
Julie Dumont
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